Bel Rocha, GSA 22: uma conversa sobre território, memória e educação

território, memória e educação

‘Durante muitos anos, aquela rua que se abria depois da casa de tia Maria foi a cena das nossas brincadeiras todas de criança, em noite de lua cheia – e mesmo quando não era, nós que iluminávamos ali, com as nossas (en)cantarias no meio da noite. 

Primos, amigos, vizinhos, atores de um filme inventado, anfitriões de brincadeiras de se esconder. Crianças da vila. Qual é o nome mesmo que damos para aquele túnel de concreto onde os fios de energia são guardados debaixo da terra? Pronto, era esse o nosso palco. 

A gente brincava de futuro (ser gente grande) e cantávamos as músicas que tocavam nosso coração. Brincávamos ao lado do único orelhão da vila inteira que ficava dentro da varanda da casa de tia Maria e quando ele tocava, de tempos em tempos, a gente corria querendo adivinhar a voz que dizia o alô.” – trecho de diário e relato meu sobre a vila.

 A rua e a casa de Tia Maria foram palco de um tanto de acontecimentos na Vila Estevão: a casa com televisão que recebia todos os moradores para assistirem à novela; a casa em que existiu a primeira vendinha de merenda da época; a casa que era ponto de encontro dos pescadores da comunidade; a casa que reunia pessoas descontentes sobre as ausências e todas as demandas da vida; a rua que dava acesso a entrada da comunidade; a rua que depois da chuva, ficava boa para andar de bicicleta. 

E ela, tia Maria, uma das lideranças comunitárias mais velhas, foi a primeira presidenta da associação, a merendeira e guardiã da primeira escola construída no nosso território, na época do telecurso ainda. É a liderança que fechava a rua para cuidar da nossa brincadeira, para preservar a mudinha de coqueiro recém plantada na esquina; a mesma que batia de frente com os engravatados da cidade impedindo a desapropriação da população estevense para a construção de um resort de luxo ou sei lá mais o quê. O que me faz pensar que a sua presença está entre aquelas que me ensinaram a não ceder ou, como diz Audre Lorde: “impedir que eles nos peguem”.

As crianças-de-hoje já sabem da relevância da tia-liderança e de suas práticas amorosas na comunidade., Eelas ainda brincam naquela mesma rua e reconhecem a trajetória de quem esteve antes. Não por acaso, os mais velhos também usam o “tia” antes de mais nada. 

Minha sensação é de que essa memória coletiva confere as (r)existências, fortalecendo a relação de pertencimento, afeto e de esperança mesmo. Como diz Dona Jacira, autora do livro “Café”, “não precisamos ler branca de neve para aprender valores sobre coragem, podemos olhar na nossa própria trajetória”. E isso é: o que já temos disponível no nosso enredo familiar e comunitário. 

A rua que eu brinquei de cantar no palco, a minha mãe também brincou. O tempo era outro, as músicas eram as mesmas. Igual uma que minha avó cantava pra mim, sendo a mesma que ela cantava pra minha mãe, que dizia assim:

“Lagarta pintada,
quem foi que pintou?
Foi o velho mais a velha
que por aqui passou.”

Quando eu cheguei, essa música já existia, já estava sendo cantada. Dentro ali, um encontro muito bonito com a atmosfera de tantos anos atrás aconteceu. Percebo o desafio de reencontrar essas canções quando vivemos na tecnologia digital com tantas informações frias, tantas músicas cantadas por máquinas, sem memória de território, sem memória encantada. A tecnologia social, como chamam, diz sobre a história que Dona Jacira conta, a música que minha avó canta, as histórias de tia Maria na criação de futuros estevenses. Bem desse lugar: “retornar ao passado para ressignificar o presente e construir o futuro” – essa é a tradução de Sankofa, ideograma ganês representado por um passarinho. Ou ainda, retornar às gerações e descobrir o que está guardado. 

Sou a quarta geração de infância que foi cuidada por uma aldeia inteira, como diz aquele ditado. Meu imaginário de criança foi povoado com as revoluções de tia Maria e tantas outras imagens. Tenho a hipótese de que, como guardiãs da cultura, as pessoas adultas têm um compromisso sensível com as crianças de hoje e as que ainda estão por vir: buscar aquelas memórias que tornam as nossas vidas possíveis e não as esquecer.

bel rocha é afro.cearense que nasceu numa vila de pescadores. estuda pedagogia para integrar a vivência comunitária e cultural na prática pedagógica, trazendo afeto e memória à educação. atua em organizações sociais com crianças, jovens e adultos, escrevendo e facilitando programas e vivências de impacto social.  

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