“Olhamos para o mundo uma vez, na infância. O resto é memória.”
Louise Glück, no poema “Nostos”
Quais cores e formas o mundo revela quando o vemos na infância?
Gosto de pensar que a gente é feita de vários pedaços – um pouco do que vivemos e muito das relações que temos. Que os sons, as paisagens, as emoções e tudo o que nos cerca, vão trazendo sentido às nossas experiências.
Das vezes que olhei o mundo na minha infância, guardei as cores verdes vibrantes e as brincadeiras nas ruas e nos terrenos baldios de Curcurana; guardei as aventuras de atravessar o bairro pulando nas pedras improvisadas pelos adultos – eram para evitar molhar os sapatos nos alagamentos que apareciam frequentemente pós chuva mas eu jurava que eram para que pudéssemos dar saltos iguais aos que eu via na TV, na ginástica olímpica; guardei algumas das curiosas figuras do território, como “Zé Doido” que andava sempre com um saco nas costas e todas as crianças julgavam que ele era o temido Homem do Saco, bastava ele aparecer no finalzinho da rua, nenhuma de nós ficávamos.
Crescida, penso como seria ter conhecido as primeiras pessoas que tiveram a ideia de colocar pedras para a gente – além de brincando – passar a pés enxutos, por exemplo. Como seria ter conversado com os primeiros habitantes, escutar os sonhos que lhe moveram para que chegassem até ali?
Desconfio que também dessa vontade surgiu o Museu dos Sonhos Vivos.
A iniciativa nasceu em 2023, através do edital jovens ideias, do Instituto Elos, e materializou em sua primeira edição, lá na Bomba do Hemetério, alguns dos desejos que pulsavam por aqui: descobrir – como quem tira uma coberta – histórias de territórios vulnerabilizados, levantando suas memórias e seus sonhos. Potencializar a preservação da memória através do diálogo, onde as crianças – e também a minha criança – colocam seus sonhos e saberes lado a lado dos sonhos e saberes das pessoas mais velhas.
A memória coletiva ajuda a gente a entender quem somos, a ampliar nossa consciência de lugar no mundo.
Neste ano, em sua segunda edição, o Museu dos Sonhos Vivos está sendo construído em Brasília Teimosa – Recife*, território que respira resistência desde os seus primeiros habitantes e cultiva, também nas infâncias, a memória viva desse espírito de luta pela permanência.
No percurso de construção do Museu no território, realizamos diversos encontros de escutas e cocriação, onde temos vozes compartilhando e ecoando os melhores sonhos, como: “videogame de graça na praça”; “que tudo fosse apenas 1 real” e “uma praia mais limpa, pois toda vez que vou na praia corto o pé por conta de vidros que as pessoas deixam”.
Quantas vezes a infância nos ensina a olhar o mundo com os olhos de quem sonha?
É bonito pensar nas memórias como sementes que, ao serem cuidadas, podem florescer em novos sonhos e possibilidades. Ao preservar essas histórias, estamos criando um legado que não só honra o passado, mas também inspira a construção de um futuro mais cheio de vida.
Quando as crianças ouvem relatos de seus antepassados e podem expressar também as suas vivências e percepções, não apenas aprendem sobre suas origens, mas também ganham um senso de pertencimento e continuidade.
As memórias das infâncias também são um patrimônio coletivo que ajuda a formar a identidade e o espírito da comunidade. É com elas que acreditamos ser possível seguir semeando o futuro das Memórias e dos Sonhos. Vamos?
Esta edição do Museu dos Sonhos Vivos está sendo possível através do incentivo do Edital Jovens no Clima Recife 2024, uma realização da Rede Conhecimento Social e do Delibera Brasil, com financiamento do Fundo de Ação Climática Juvenil da Bloomberg Philanthropies e o apoio da Prefeitura da Cidade do Recife.
Esse artigo foi escrito por Karinne Costa, GSA 2022 – poeta, arte educadora e comunicadora. Formada em comunicação com especialização em arte educação e urbanismo social, atua como consultora de comunicação institucional e no desenvolvimento e gestão de projetos sociais nas áreas de cultura, educação e convivência comunitária.